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A borboleta e o gato 

 

de Priscila Gontijo

 

A janela estava aberta. O gato saltou e capturou a borboleta, se antecipando num salto fatal. Desceu da janela, inquieto e excitado com a própria glória. Fiquei muito orgulhosa desse feito. Aplaudi. Nunca antes me senti tão possuidora de um gato. Isso me encheu o peito há muito esmorecido. Ele fazia o que melhor sabe: engatinhava de um lado para o outro com o troféu na boca. Ajudei-o fechando a janela para a caça não fugir. No início, ferimentos leves, até que aos poucos, ela foi perdendo quase que integralmente as asas. Exausta, ficou largada a si mesma. Nesse momento intervim. Coloquei o dedo embaixo da pata finíssima e, ao retirá-lo, um quase corpo veio junto, quase morto. E grudou de tal maneira na ponta do meu indicador que me sentei para observá-lo melhor, com a concentração de quem observa uma coisa distante de você. O outro. Meu gato respeitou essa indiscrição. Sua presa permanecia imóvel, apoiada nessa pausa, do dedo e do gato. Estava estraçalhada, mas ainda vivia. Num resto de asas, vi um mapa. Olhei de perto. Vi toda a nossa vida. Eu tentava ler nessas frágeis linhas. Estava manca. Uma patinha ficou com o gato. Ele, impaciente, circulava pela casa. Foi então que ela se moveu lentamente, e só com um mínimo esforço: o derradeiro. Nunca havia eu, antes, experimentado o delicado da vida – ainda que fosse num quase corpo, quase morto – e agora minha mão possuía essa pequena extensão que, em vão, insistia em voar. Assim, de repente, e tão sem aviso, me vi impressa nesse inseto, que apenas vestia um par de asas mutiladas. Estava nua. Ela, que não se sentia merecedora de asas e por isso fez um voo rasante tão perto da janela onde se entretinha um gato. E agora eu intervinha. E como eu ousava me intrometer num jogo amoroso entre uma borboleta e um gato? Que direito tenho eu de tirar da boca de um felino o seu desejo pelo poder de vida e morte? Que ele conquistou e não eu. A natureza não pedia a minha intervenção. Nem o meu apoio. Querendo libertar a borboleta eu refreava o rio. Com apenas a ponta de um dedo, mas movida pela vontade autoritária de uma humanidade não menos vulnerável. E mais uma vez as imperceptíveis membranas do voo impossível se abriram e se fecharam, lentamente. E pude reler o irrefreável passado, o regulado presente e um preestabelecido futuro nessa estraçalhada existência. E vi como se sucedia essa morte lenta. A minha e a dela. Estávamos as duas no pronto-socorro. Na fila. Sem senha nas mãos. A minha senha era ela. Quando de novo tentou se mover, eu me vi mais manca do que nunca. Olhei o céu fora da janela fechada. Aí, já me era impossível não a salvar. Mesmo sabendo que esse salvamento seria a pior morte, pois que uma borboleta ela já não era mais. Fui mais violenta que a mordida do gato. E me escondia sob a desculpa da bondade. Da cordialidade com a natureza. Com esse gesto poderia limpar a minha consciência tão humana. Olhei-a mais de perto e vi que me mostrava a língua. Eu não sabia da existência dessa língua. Ela usava a língua pra tentar substituir a pata que faltava. Tive medo. De um momento para o outro a achei perversa e perigosa. Estrangeira. Aquela língua me desmontou. Levantei-me e me dirigi ao céu, que nesse momento sofria uma mudança vertical do azul ingênuo para o malicioso. Logo mais seria noite: eu não poderia possuir algo que continha essa potência de voo. Seria muito arriscado. Escancarei a janela. O azul do céu se enfurecia comigo. Parecia ofendido com a minha intervenção antinatural. Então coloquei a mão pra fora. Balancei o dedo. Ela não se desgrudava. Ouvi ao longe uma comemoração. Cantavam parabéns pra você. Sacudi a mão toda. Nada. O céu escurecia rápido, de anil a violeta. Ela já não esboçava nenhum impulso de libertação. Ao contrário, tentava rastejar-se na direção contrária, pra dentro. Entendi. Ela nunca mais iria pra fora. 

 

Agora ela está aqui, comigo, tremendo seus últimos momentos de vida. E pode ser que esse tremor dure muito.

 

Um tremor que dura mais do que a sua fugaz vida de borboleta.

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