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A autopropagação em Cactaceae, ou como cactos escapam da morte.

 

Igor Wassiljew Moia

“As ideias são como cactos que, mesmo destroçados e enterrados, voltam a brotar com aparência de coisa nova e que machucam quem os toma de forma imprópria”

 

Dilson Vargas Peixoto

As plantas são seres vivos ainda muito incompreendidos e por demais diferentes de nós, animais. Essas diferenças, como apresentadas de maneira exemplar por Mancuso e por Coccia, são inúmeras e garantem a esses seres vivos um tipo de ligação com o planeta bastante distinto do que temos. Com efeito, as plantas se conectam ao lugar que estão de uma maneira que jamais fomos capazes de fazer. Ao fixar suas raízes no solo, as plantas formam uma ligação muito íntima com a Terra. Essa ligação é tão profunda que, através das Eras, as plantas ajudaram a moldar, dentre outras coisas, o próprio clima do mundo. E desde que as plantas terrestres surgiram, há aproximadamente 430 milhões de anos (Ianuzzi, 2005), elas foram responsáveis por muitas mudanças no planeta, afetando profundamente a vida dos outros seres vivos, em especial a dos animais, uma vez que são as plantas, antes de tudo, a sua principal forma de alimentação. Mesmo os animais carnívoros dependem das plantas, uma vez que os herbívoros dos quais se alimentam, por sua vez, as consomem. Até os animais marinhos dependem de organismos fotossintetizantes, neste caso, algas e microalgas. A morte de plantas é essencial para que exista a vida animal. E é justamente esse o tema deste ensaio: a morte de plantas ou, melhor dizendo, como algumas plantas encontraram maneiras de escapar da morte.

Neste ensaio, trarei o foco para um grupo bem específico de plantas: os cactos, plantas originárias das Américas e com muitas características que os auxiliam nessa empreitada. Se tratam de plantas geralmente suculentas, adaptadas a viver em ambientes áridos, o que já lhes confere uma grande vantagem por terem reservas de água. Também possuem espinhos, muito úteis ao evitar que alguns animais comam seus corpos. Possuem um metabolismo diferente da maior parte das outras plantas, abrindo seus estômatos – poros por onde realizam trocas gasosas – durante a noite, enquanto as demais abrem durante o dia, evitando ainda mais a perda de água graças às temperaturas amenas. No entanto, não é em nenhuma dessas características dos cactos quero focar.

Quando ainda era estudante de iniciação científica em Santa Maria e comecei meus trabalhos com os cactos, realizei coletas dessas plantas. Dentre elas, um filocládio – uma “raquete”, segmentos do caule– de palma (Opuntia sp), que acabou ficando esquecido em um canto do laboratório de taxonomia vegetal durante 2 meses. Ele ficou lá, sozinho, fora do solo e sem contato com água. Quando o encontrei (melhor dizendo, quando me lembrei dele), ele não estava morrendo. Pelo contrário, estava crescendo. Novos brotos surgiam a partir do caule mais velho e se espalhavam pelo pequeno canto do laboratório em que se encontravam, como se tentassem escapar do pequeno ponto que lhes fora reservado. Estavam, de fato, fazendo isso e qualquer outra planta o faria. Mas o que quero chamar atenção é ao fato de que a maior parte das outras plantas não teriam sobrevivido uma semana ali naquelas condições, sem água, sem terra e no ápice do verão santa-mariense, em que a temperatura chega facilmente a 35ºC. Não, outras plantas não aguentariam. Mas os cactos sim. Eles tomaram a plasticidade e capacidade de se adaptar a problemas que as plantas possuem e as elevaram ao extremo. Por fim, acabei levando o cacto para casa, e ele me acompanha até os dias de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os brotos de cactos se formam como novos ramos no corpo das plantas. Ao se comparar com uma árvore, por exemplo, novos ramos são equivalentes aos novos troncos que se formam com o passar do tempo. Mas, nos cactos, cada um desses brotos possui o potencial de se tornar uma nova planta ao se separar de seu corpo principal. É importante notarmos que essa nova planta é, geneticamente, idêntica à sua planta-mãe, ou seja, ela é um clone, uma extensão de si mesma. Essa extensão pode, por sua vez, dar origem a inúmeros novos brotos. Em alguns cactos, como os que vivem em paredões rochosos, isso garante à planta uma eficiente forma de se mover: a planta-mãe, presa ao paredão rochoso, dá origem a brotos, que por sua vez se desprendem e caem paredão abaixo e, assim, acaba espalhando a si mesma por uma área maior .

É um processo parecido com o que nós, humanos, realizamos ao propagar mudas de árvores frutíferas. O que garante que uma macieira dará maçãs iguais a sua progenitora, não é o plantio através de sementes, e sim através de estacas, que são mudas produzidas a partir de galhos da macieira adulta. As árvores plantadas a partir de sementes são geneticamente diferentes da árvore em que surgiu, o que faz com que as características dela também sejam diferentes. Já as estacas, são clones das macieiras, o que dá uma maior garantia de que elas terão maçãs mais parecidas com as de sua progenitora, fazendo com que pomares inteiros possam ser formados por clones de uma mesma planta. As estacas são equivalentes aos brotos dos cactos. No entanto, os cactos não precisam de um intermediário para realizar esse processo, eles se autopropagam, inventaram a propagação por clones bem antes de começarmos a fazer isso. É importante destacar que essa autopropagação é um processo bem diferente da forma de reprodução da maior parte das plantas na natureza, que é através de sementes. Cactos também se dispersam por sementes, que costumam ser bastante pequenas. Os frutos são comidos por aves e, assim, as suas sementes são levadas para outros lugares. Mas no caso da dispersão por brotos, o que se forma é uma população geneticamente homogênea. Em outras palavras, uma população de uma única planta. Aqui percebemos que o conceito de indivíduo, muito empregado e importante especialmente na biologia animal, começa a se tornar limitado e pouco útil, uma vez que uma grande parte dos indivíduos de uma população de cactos que estão ocupando o mesmo lugar, são na verdade, clones. Essa população é um único indivíduo?

De maneira análoga a forma que nós, humanos, podemos levar partes de nós mesmos a outros lugares através da dispersão de nossas ideias, os cactos podem levar partes de si mesmos a outros lugares também, mas não através de ideias, e sim através de seus próprios corpos.

Certa vez, em campo, encontrei uma população de uma espécie de cactos do gênero Parodia Speg., cactos pequenos, com formato globoso e que costumam viver em solos bastante rochosos. Quando os avistava no chão, havia sempre um cacto maior e outros menores espalhados ao seu redor. À primeira vista, parecia apenas que era um cacto mais velho e outros jovens que cresceram a partir de semente, pois não estavam grudados um ao outro, como costuma acontecer com os brotos. Como eu precisava realizar coletas dessas plantas, comecei, com bastante cuidado, a desenterrar um dos cactos maiores e enquanto o fazia, percebi que os cactos menores que cresciam no solo ao seu redor, estavam todos interligados pelas raízes ao cacto central. Eles não eram cactos jovens que nasceram separados, eram brotos também, mas diferentes dos brotos usuais, que crescem diretamente no caule do cacto mais velho e com o tempo, podem se desprender. Estes cresciam a partir das raízes e conforme cresciam no subterrâneo, abriam caminho pelo solo até surgirem na superfície. Assim, o que aparentava ser um grupo de plantas crescendo próximas, na realidade era apenas uma. Os brotos, portanto, conferem duas habilidades muito importantes para os cactos. A primeira, é a mobilidade e a segunda, é a capacidade de adiar e, talvez, até escapar da morte.

 

 

Nos cactos, o movimento é algo importante. Diferente da maior parte das plantas, aqui o movimento que o cacto realiza não é o de partes do seu corpo, como a abertura e fechamento de folhas, como é o caso da Mimosa pudica, dorme-dorme ou dormideira, como é conhecida no Brasil. Tampouco, esse movimento é como o do Erodium cicutarium, o bico-de-cegonha, cujos frutos explodem e realizam uma dispersão admirável de suas sementes, que por sua vez também possuem certo grau de mobilidade. (Mancuso, 2019). O movimento dos cactos é distinto e lhes confere autodispersão. Embora alguns possam ser grandes, rígidos e pesados devido à grande quantidade de água que armazenam, os cactos se mostram eficientes dispersores de seus próprios corpos. Essa dispersão ocorre de maneiras variadas, mas sempre a partir de brotações, como se estender as raízes pelo solo, de onde surgem brotos que emergem à superfície e também ao se desprenderem os brotos que surgem no caule, que conseguem fixar suas raízes em outros locais que por acaso caiam.

Já a segunda habilidade, a de escapar da morte, se dá por uma soma de fatores. Os primeiros são as adaptações que os cactos possuem para viver em ambientes considerados inóspitos pela maior parte das plantas, como ambientes áridos e paredões rochosos. Os espinhos, além de uma proteção contra potenciais predadores, também são uma adaptação eficiente em áreas quentes. Espinhos são folhas hiper-modificadas que, por serem rígidas e finas, diminuem a superfície de contato da planta com o sol e reduzem a quantidade de água que a planta perde durante o dia.  O segundo fator que quero destacar são justamente os brotos e a forma que eles garantem uma imortalidade em potencial à essas plantas. Um único cacto pode viver por algumas centenas de anos, o que por si só já um feito considerável. Mas uma população de cactos originada a partir de um único cacto, é virtualmente imortal, uma vez que cada um dos cactos dessa população pode produzir novos brotos, que por sua vez podem produzir novos brotos e assim por diante.

Cactos de fato possuem muito interesse em escapar da morte. São muitas as adversidades que eles precisam enfrentar, além daquelas que a própria natureza lhes impõe. A principal delas, infelizmente, é a coleta desenfreada de cactos por seres humanos. A família Cactaceae é o grupo de plantas mais afetado por coletas ilegais, em sua maior parte, a fim de serem comercializadas. Outro fator que afeta negativamente a vida e a distribuição dessas plantas, é a expansão de áreas rurais para criação de animais e para plantio de espécies cultivadas, o que destrói os locais que esses cactos vivem (Goettsch, 2015).

O avanço do agronegócio em locais de alta diversidade de cactos, como é o caso dos pampas no Rio Grande do Sul, é um fator decisivo na ameaça aos cactos e a toda biodiversidade local. A região, somada aos pampas Uruguaios, já é atualmente o local com maior número de espécies de cactos ameaçados de extinção em todo o mundo. Segundo Brack:

 

 

 

 

 

Além disso, traz uma série de problemas consigo. Não são raros os casos de trabalho escravo em áreas de latifúndio no estado (Àvila, 2020). Não faltam também denúncias de ameaça por parte de fazendeiros contra pequenos produtores e agricultores familiares, como as famílias que compõem o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, assim como a Comuna Pachamama (Medeiros, 2015; Oliveira, 2012a). O alto teor dessas ameaças se mostra evidente na cidade de São Gabriel, considerada o coração do latifúndio rio-grandense, onde ocorreu uma grande movimentação em 2003 pela desapropriação da Fazenda Southall, de 13 mil hectares e que possuía com o governo dívidas somadas em mais de 30 milhões de reais. Segue um trecho de panfleto divulgado por ruralistas à época:

Há aqui uma tentativa por parte dos ruralistas de animalizar as famílias ao chamarem-nas de ratos. Ao fazer isso, o capital demonstra sua incapacidade de lidar-com-o-problema, já que o motivo pelo qual o faz é o de que a sociedade capitalista é incapaz de viver junto de outras espécies. O capital é destrutivo e não pode, por seu próprio caráter acumulativo, coexistir com outros seres e este é um dos motivos pelo qual os ratos e a maior parte do restante dos habitantes do planeta são vistos como indesejáveis (Haraway, 2016, p. 58-76). Os ratos-candango de Brasília, cujo nome vem dos operários que construíram a cidade, com o avanço do dito progresso da sociedade, foram expulsos de suas terras por serem considerados sujos, indesejáveis e, por fim, desapareceram (Fausto, 2017, p. 229-237).

Assim como os ratos, as famílias que lutavam pelo assentamento nas terras de latifundiários, oriundas em grande parte das periferias da região metropolitana de Porto Alegre, foram também expulsas das cidades ao serem marginalizadas. Ao chegarem, foram tidas como indesejáveis e, tal como os ratos, em palavras dos ruralistas, deviam ser exterminadas. Mas aqui, ao contrário dos ratos-candango, que desapareceram, as famílias gaúchas resistiram e continuam a lutar pela reforma agrária em São Gabriel, no assentamento Madre Terra. Como os cactos gaúchos, estão ameaçadas pelos mesmos latifundiários e também como eles, resistem em meio aos pampas.

Calejados do trabalho na terra, ou com espinhos e brotos, a resistência contra o latifúndio persiste nos pampas.

Calejados do trabalho na terra, ou com espinhos e brotos, a resistência contra o latifúndio persiste nos pampas.

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Opuntia sp
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Parodia sp. É o gênero de cactos com maior grau de ameaça de extinção no RS.

“Gabrielenses dizem não à invasão e a seus apoiadores

Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nesses anos, seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana.

São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. ” 

(Oliveira, 2012b)

“O bioma, originalmente, abrangia cerca de 15 milhões de hectares. Hoje, ele está reduzido a oito ou nove milhões, considerando que parte desse valor, já estaria, em alguma parte, descaracterizado. A cada ano, no mínimo, 140 mil hectares estão se perdendo devido o avanço da fronteira agrícola e também da silvicultura. ” (Brack, 2007)

Referências:

Àvila, C. Rio Grande do Sul integra rede de exploração do trabalho escravo. Jornal Extra Classe. 2020. Disponível em: https://www.extraclasse.org.br/justica/2020/10/rio-grande-do-sul-integra-rede-de-exploracao-do-trabalho-escravo/. Acesso em: 24/11/2020

Brack, P. O Pampa gaúcho é alvo de biopirataria, denuncia ambientalista. São Leopoldo, Revista do Instituto Humanitas Unisinos. Entrevista com Paulo Brack. 2007. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/1558-paulo-brack-1. Acesso em: 24/11/2020

Coccia, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. 1ª ed. Editora Cultura e Barbárie. 2018.

Fausto, J.S.C. A cosmopolítica dos animais. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 300 p. 2017.

Ianuzzi, R.; Vieira, C. E. L. Paleobotânica. Porto Alegre, Editora da UFRGS. 2005.

Goettsch, B. et al. High proportion of cactus species threatened with extinction. Nature Plants volume 1. 2015

Haraway, D.J. Staying with the trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press. 2016.

Mancuso, S. Revolução das plantas: um novo modelo para o futuro. UBU Editora. 2019.

Medeiros, C. Famílias Sem Terra são ameaçadas por ruralistas no RS. MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. 12 de novembro de 2015. Disponível em:https://mst.org.br/2015/11/12/familias-sem-terra-sao-ameacadas-por-ruralistas-no-rs/. Acesso em: 28/11/2020

Oliveira, A. Assentados no fim do mundo. Pública - Agência de Jornalismo Investigativo. 2012a. Disponível em: https://apublica.org/2012/08/assentados-fim-mundo/. Acesso em: 27/11/2020

Oliveira, A. Anos na briga por reforma agrária. Pública - Agência de Jornalismo Investigativo. 2012b. Disponível em: https://apublica.org/2012/08/anos-na-briga-por-reforma-agraria-em-sao-gabriel/. Acesso em: 27/11/2020

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