top of page

Histórias conturbadas

Apanhadores de cogumelos & novas formar de narrar

 

 

Por Priscila Gontijo (Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH-USP)

Não é difícil compreender que para aceitar a multiplicidade do mundo há que se conviver com tecnologias avançadas, com espécies companheiras e criar as condições necessárias para coexistir com humanos e não humanos em sua heterogeneidade. Mas como coexistir com verdades contraditórias e polêmicas? Como incentivar outras potências de viver? Como estabelecer uma aliança entre heterogêneos no coletivo? Acredito que encontrar novas formas de nos relacionar atravessa a narrativa de ficção. Ao elencar alguns conceitos de filósofos e antropólogos contemporâneos como Donna Haraway, Anna Tsing, Emanuele Coccia e Juliana Fausto, o objetivo deste ensaio é uma abordagem que permita sugerir novas formas de pensar a escrita da narrativa de ficção.

Na conversa com sua tradutora para o espanhol, Helen Torres, em maio de 2020, Donna Haraway, autora do livro Ficar com o problema, diz que as “Histórias de Camille” são a sua primeira tentativa de escrever uma ficção especulativa, uma ficção científica. A fábula surgiu de uma oficina de narração especulativa junto à Vinciane Despret e Fabrizio Terranova em que os autores usaram muitos fatos científicos para construir uma história:

“As crianças do composto insistem que precisamos escrever histórias e viver vidas para o florescimento e para a abundância, sobretudo frente à destruição e ao empobrecimento devastadores” (Haraway, 2020).

Para Haraway, o Cthulhuceno é como uma proposta de contar histórias, de refazer tempos, compondo temporalidades emaranhadas entre o que foi, o que é e o que ainda está por ser, ou seja, o Cthulhuceno é um convite para habitar um “devir-com”. As histórias de Camille funcionam como um esboço de histórias possíveis, um tipo de revezamento, como um jogo de cordas com histórias entrelaçadas. Segundo Haraway as alianças de Camille consistem em trabalhar com e para os humanos e os não-humanos.

No ensaio, “The Carrier Bag Theory of Fiction” de Ursula Le Guin, citado por Haraway na conversa com Torres, Le Guin fala sobre:

(...) a necessidade de deixar de contar o conto fálico, o conto do herói com as armas, o conto de viagens fálicas que regressam com a recompensa...basta de histórias fálicas! Precisamos contar as histórias dos detalhes minuciosos de como viver e morrer juntxs, as histórias de colecionar e compartilhar e pegar e dar que não são, de forma alguma, histórias inocentes, mas são histórias de viver e morrer como uma sacola de rede, como uma mochila, como uma espécie de coleção. Essas são as histórias que Le Guin pensa como a forma da ficção. Então, não se trata do espaço da matriz com o significante privilegiado que se desloca através do relato, senão algo mais parecido com essa mochila portadora feita por um coletivo de mulheres (...) (Haraway, 2020)

 

Quando Haraway diz que nossas práticas de contação de histórias estão repletas de formas de imaginar e performar mundos que façam mais sentido, como uma performance cosmológica, alguns conceitos de Anna Tsing parecem ecoar das profundezas do bosque, clamando por modos alternativos de uma nova escritura, onde habitar um devir-com seja não só possível, mas almejado. Essa nova forma de ficcionalizar urge por uma comunicação transespecífica, de encontros imprevisíveis, a partir da floresta de cogumelos Matsutake. Ao descobrir iguarias nascidas das ruínas, poderemos – quem sabe – expandir com os limites do narrar.

Em seus livros, Tsing abandona a etnografia e se aproxima do texto literário em uma perspectiva dialógica. Em O Cogumelo no Fim do Mundo: Sobre a Possibilidade de Vida em Ruínas Capitalistas, por exemplo, Tsing mostra que o trabalho com fungos é capaz de atravessar os limites entre ciências naturais e estudos culturais e revelar um conhecimento não apenas crítico, mas criador de mundos, uma multiespécie narrativa.

 

Chegou a hora de novas maneiras de contar histórias verdadeiras além dos primeiros princípios civilizacionais. Sem Homem e Natureza, todas as criaturas podem voltar à vida, e homens e mulheres podem se expressar sem as restrições de uma racionalidade paroquialmente imaginada. Não mais relegado a sussurros na noite, essas histórias podem ser simultaneamente verdadeiras e fabulosas. De que outra forma podemos explicar o fato de que qualquer coisa está viva na bagunça que fizemos? (Tsing, 2015, p.VIII)

 

 

O que está em jogo é construir narrativas mais densas sobre os fenômenos com os quais nos deparamos. E para isso não apenas são necessárias outras formas de ver o mundo, como também ter a capacidade de escutá-lo, de pressenti-lo, de aguardá-lo e de compreender que não há apenas um mundo, mas variações dele, em planos distintos. Se continuarmos impassíveis diante de velhos dilemas de indivíduos implacáveis em suas estratégias de expansão e conquista, talvez não possamos nos abrir para a precariedade vindoura. Se ser vulnerável aos outros for condição imprescindível para novas inventividades, colocaremos a precariedade como urgência ficcional. É necessário deslocar as bordas indisciplinas para o centro das coisas. Dessa maneira, poderemos vislumbrar imprevisibilidades desiguais que nos transformam, pois o controle nada altera.

Em Viver nas ruínas_ paisagens multiespéceis no Antropoceno, Anna Tsing menciona que a “‘virada acadêmica’ para a multiplicidade se destaca com os múltiplos aparatos de conhecimento atuando simultaneamente” (Tsing, 2019, p.142). Ao questionar como o conhecimento, muitas vezes, pode bloquear essa possibilidade, ou seja, a possibilidade de o material reagir aos seus variados componentes, Tsing encontra em Haraway uma exceção, justamente no modo como a bióloga fala em animar o material relacionando-o à contação de histórias:

Uma exceção aos problemas que estou levantando pode ser encontrada no trabalho de Donna Haraway, que mostra como empilhar histórias sobre histórias, adicionando contexto ao contexto, podendo animar o material. Em vez de segregar formas de operações para ver formas de materiais que emergem delas, Haraway mostra labirintos de mecanismos e materiais, intrinsecamente entrelaçados em padrões que ela chama de “figuras de corda” (idem).

 

Tsing se pergunta se poderia haver outros tipos de multiplicidades. Não nossas ontologias múltiplas, mas de outros seres também. Para isso é preciso aceitar que não humanos respondam uns aos outros: como abrir nossas vidas sociais para além do humano como o conhecemos? Na jornada para a construção de novos mundos, Tsing nos encoraja a olhar para nós mesmos de perto e propõe um novo desafio:

 

Talvez seja hora de desviar para o que Michael Marder chama de “pensamento vegetal” – e também de pensamento fúngico ou bacteriano – para nos conduzir às relações multiespécies nas quais a consciência e a intenção podem não ser o lugar para começar. Aqui, mais de dois podem participar da criação de mundos, e nenhum deles precisa ser humano. (idem, p.145)

 

Em seu estudo com os cogumelos Matsutake, a antropóloga acompanhou as relações comerciais e ecológicas através de técnicas relacionadas. Uma de suas intervenções metodológicas foi fundamentar pesquisa e análise em uma paisagem, pois “uma paisagem pode existir em qualquer escala, mas sempre envolve uma diversidade de fragmentos. (...) Pensar com paisagens abre a análise para uma multiplicidade entrelaçada” (idem, p.149). A produção de cogumelos nos ajuda a entender redes de economia mundial.

Esses métodos se reúnem para possibilitar o conceito de assemblage. Assembleia nada mais é que uma ferramenta para investigar “como variadas espécies em um agregado de espécies influenciam umas às outras. (...) e nos mostram histórias potenciais em formação” (idem, p.150). O termo, usado como conjunto de coordenações através da diferença, ganha de Tsing o aditivo “polifônico” e assim, pode apontar para uma nova dimensão da escritura narrativa. Escritura essa em que a percepção aprecia os múltiplos ritmos temporais e trajetórias do agenciamento, ao contrário do ritmo do progresso.

Esses ritmos têm sua relação com as colheitas humanas; se adicionarmos outras relações, por exemplo, a de polinizadores ou outras plantas, os ritmos se multiplicam. A assembleia polifônica é a reunião desses ritmos, resultam de projetos de criação de mundos, humanos e não humanos. (idem, p.152)

 

Se o progresso deixou de fazer sentido, talvez seja o momento de abandonar seus ritmos para assistir a montagens polifônicas.

Tsing afirma:

O progresso é uma marcha para a frente, atraindo outros tipos de tempo em seus ritmos. Sem essa batida motriz, podemos notar outros padrões temporais. O progresso ainda nos controla, mesmo em contos de ruína. Humanos, pinheiros e fungos criam arranjos de vida simultaneamente para si próprios e para os outros: mundos multiespécies. À medida que os contos de progresso perdem força, no entanto, torna-se possível ter uma aparência diferente. (Tsing, 2015)

 

Se a história sem progresso é indeterminada e multidirecional, as assembleias podem nos mostrar suas possibilidades, pois resultam de agitações multiespécies. Os cogumelos não obedecem a cronologia de nascimento e morte. Eles não morrem, apenas desaparecem quando não existe mais condições de sobrevivência. Nesse sentido, a proposta de uma escrita Matsutake ou de uma multiespécie narrativa não tem unidade e nem é passiva. Ela obedece a uma via não cronológica e sua presença espacial é indefinida, dispersa, sua indeterminação faz parte da história. Ela é narrada nesse “presente espesso”.

Na visão de Le Guin, o empreendimento heroico, hercúleo, prometeico, concebido como um triunfo, na verdade, é uma tragédia, pois a ficção que encarna esse mito do homem que conquista a terra, o espaço, a morte, alcança, na mesma medida, o apocalipse, o holocausto. Ela continua:

(...) Se, no entanto, evitarmos o modo linear, progressivo, o tempo (que corre) como seta do Techno-Heroico, e redefinirmos a tecnologia e a ciência como uma sacola de transporte cultural sobretudo, e não uma arma de dominação, um efeito colateral agradável será que a ficção científica poderá ser vista como um campo muito menos rígido e estreito, não necessariamente prometeico ou apocalíptico, e de fato menos um gênero mitológico do que realista. É um realismo estranho, mas é uma realidade estranha. (Le Guin, 1986)

 

Em Le Guin a linguagem é reconceitualizada e sugere um contínuo entre humanos e não humanos, transformando-a, nas palavras de Juliano Fausto “em cosmoliteratura” (Fausto, 2017, p. 175).

Emanuel Coccia, filósofo italiano, sugere uma virada ontológica a partir das plantas, ou seja, um reconhecimento epistemológico das plantas. Coccia sugere que o fenômeno de combinação de espécies e fatores é produto do ambiente. O filósofo nos conduz para um pensamento atmosférico, ambiental em que há uma reivindicação do inorgânico. Ele propõe um deslocamento radical do olhar ao desfazer a ideia de origem humana. Esse começo da vida está acontecendo o tempo todo, em uma conexão ambiental, atmosférica entre todos os seres, entre todas as possibilidades do ambiente. Longe de pensar em um nicho, Coccia vai para o universo, para o sol. Ele faz o exercício de pensar raiz ao invés de talo.

 Criar novas maneiras de habitar o mundo passa pela contaminação como conceito, como o não domesticado, ou seja, não apenas o cogumelo, mas os ambientes onde eles existem são lugares de perturbações. Para escapar às alternativas infernais capitalistas, as perturbações são mudanças relativamente rápidas nas condições dos ecossistemas, não é necessariamente ruim – e não é necessariamente humana, mas diz respeito a um mundo que está sempre em movimento.

 Tsing argumenta que permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações habitáveis. Colaboração significa trabalhar além da diferença, o que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos:

Somos contaminados pelos nossos encontros; eles mudam quem somos à medida que abrimos caminho para os outros. À medida que a contaminação muda os projetos de construção do mundo, podem surgir mundos mútuos – e novas direções. Todos têm uma história de contaminação; a pureza não é uma opção. (Tsing, 2015, p.27)

 

Da perspectiva antropológica, o sujeito descreve o mundo a partir do mundo dos outros. Tsing parece conversar não apenas com os catadores de cogumelos, mas com os próprios cogumelos. Na dimensão literária é preciso compreender que depois de estudar os mitos, é necessário criar novas mitologias e histórias para que sejamos capazes de recriar o lugar do humano no mundo. Talvez seja necessário colocar a mitologia onde se coloca a epistemologia. É nessa dimensão mobilizadora que o saber prático das mitologias no nosso comportamento tem a possibilidade de criar cultura, reorganizando em um registro sensível a concepção de política na vivência cotidiana. Buscar a ruptura do ponto de vista do humano para o não humano propicia acender um feixe de luz nessa cidade esquecida, a cidade subterrânea que vive sob os nossos pés. Dessa forma, o eixo se desloca. O objetivo do relato não é mais a busca pelo Santo Graal, não há mais a meta fálica pela conquista da espada, pelo cálice de ouro. Na floresta, a grande conquista se dá no encontro com a minúcia, no aprendizado da caminhada, um aprendizado fúngico, do passo a passo. Nesta cidade há que se ter uma escuta afiada para novas linguagens, para um saber receptivo, que só os amantes do invisível são capazes de realizar.

Colher a palavra como um apanhador de cogumelos, a recompensa sendo o grau mínimo: uma multiplicidade de cheiros vertiginosos nascido entre bons parceiros: plantas, animais e fungos. Nessa nova forma de narrar no contemporâneo, o verdadeiro ato criativo se revela nessa zona de histórias conturbadas e contaminações ferozes, essas “zonas serpentinosas”, para usar um termo de Haraway. Aqui, a busca até considera uma visão ampla, mas que se detém no mínimo de um mundo em ruínas, de trajetórias errantes, de sobrevivência precária ou ainda, na especulação postulada pelo filósofo Emanuele Coccia em observar o mundo do ponto de vista das plantas, habitantes milenares do universo, que ao oferecer um estado de abertura, de contemplação, passa despercebido para as “grandes ideias”. Mais do que entender as redes de economia mundial com a produção de cogumelos, seguir as linhas de vida de um fungo em suas conexões instáveis possibilita entender o campo de imanência com os olhos voltados mais no devir do que nas estabilizações, ou ver de outro jeito, o mundo entendido como contaminação, como mistura, como “a arte de viver com”, “a arte de perceber”.

Segundo Juliano Fausto em sua tese de doutorado intitulada Cosmopolítica animal, as saídas animais, humano-animais, animais-humanas e alianças multiespecíficas dizem respeito à micropolítica, pois como informam Deleuze e Guattari em “Micropolítica e segmentaridade”, de Mil Platôs:

Os grandes conjuntos binários remetem a múltiplas combinações moleculares, as quais põem em jogo não só o homem na mulher e a mulher no homem, mas a relação de cada um no outro com o animal, com a planta etc.: mil pequenos sexos” (Deleuze e Guattari, 2012, p. 99)

 

Nesse capítulo, os autores distinguem as linhas em três: uma primeira linha de segmentaridade dura ou molar; uma segunda linha de segmentação maleável ou molecular, onde os segmentos são como quanta de desterritorialização e uma terceira, uma espécie de linha de fuga, linha que não mais admite qualquer segmento, e que é, antes, como que a explosão das duas series segmentares. “Na terceira linha, nem mesmo há forma — nada além de uma pura linha abstrata” (idem, p.112).

Todas as sociedades comportam segmentaridades molares e moleculares; as linhas de fuga, que se encontram no nível molecular, são aquilo que escapa e que a máquina de sobrecodificação, aquela que procura traduzir segmentos moleculares em molares, não consegue capturar. Riachos, vazamentos, ranhuras, rachaduras – o lugar da micropolítica. (Fausto, 2017, p.149)

Nessa narrativa especulativa interessa investigar esses vazamentos, ranhuras, rachaduras, aquilo que escapa, as indeterminações, oposições contínuas sem sínteses, aquilo que não é visível, explicável, fixo, porque não é mais possível acreditar em lugares estáveis ou falar de parentesco no capitalismo. Como Haraway aconselhou, a questão não é fazer força, mas descobrir como escutar em face a verdades tão diversas.

Tanto Haraway com suas histórias de Camille quanto Tsing na floresta de cogumelos Matsutake conseguem provocar cortes na marcha de progresso e possibilitar uma redefinição de arte, cultura e pensamento. Para além do multiculturalismo, as histórias de Camille permitem construir redes, entendendo que o entrelaçamento entre humanos e não humanos gera movimento. As escrituras de nossos dias seguem temporais múltiplos, revitalizando descrição e imaginação. Todos nós temos essas linhas de vida de caráter heterogêneo da comunidade, linhas étnicas, poéticas, narrativas, sexuais, de relatos da terra, dos corpos. Embora ainda não estejamos acostumados a ler histórias sem heróis humanos, sem heróis implacáveis, intuímos a necessidade de histórias de “fricção”, para usar o termo de Tsing, e de narrativas em que interações sociais conflitivas provoquem encontros colaborativos entre as diferenças: “Desimpedidos pelas simplificações das narrativas do progresso, os nós e pulsos de retalhos estão lá para explorar" (Tsing, 2015, p.6)

Nesse laboratório cósmico de misturas, de comunicações, de trocas e de coexistência de mundos, nada se separa, mas abre-se a ideia de perspectiva de mundos mais que humanos, afinal, como aquela piada séria feita pelo companheiro de Haraway: não é humano, mas húmus. Não é humanidade, mas humusidades. Ser humano é sempre já ser adubo.

A busca por outra forma de respiração, a do subsolo, entre organismos vegetais, de expansão tentacular, dialoga com a escrita multiespecífica relatada neste ensaio. Ao invés de fugir, se adaptar, como nos ensina Mancuso proferindo que “um coletivo é mais inteligente do que os membros do coletivo”.

E o que seria se deixar levar por agenciamentos polifônicos nesses planos de intersecção com o mundo vegetal? Pensar com a planta, pensar com o cogumelo, não se limitar ao mundo humano. Uma escrita Matsutake é uma escrita simpoiese, biopoética, isto é, contempla a “ciência do sensível”, as formas de vida humana e não humana, se aproxima do conceito de precariedade, da antiplantação. Ela só existe no encontro, na associação e na cooperação e/ou no parasitismo e na dissonância. É um sistema de captura, não só de produção. O apanhador de cogumelos não possui uma lógica dialética, mas polifônica. Quando Tsing diz que não existe pureza, ela propõe uma lógica pela captura. O não capturado não está dentro de casa, e sim, na estrada.

Por fim, em sua tese, Juliana Fausto oferece alternativas e modos possíveis de uma política animal a partir de conceitos variados da brincadeira, “a atividade em que, de Bekoff a Bateson, se viu a realização de uma ação querendo significar outra” (Fausto, 2017, p. 132).

Na brincadeira, ambos os participantes são levados a um lugar que não é mais aquele no qual se estava. (...) Quanto mais se brinca, mais se inventa; quanto mais se inventa, mais apto ao improviso se é tornado, ou seja, mais apto à vida mesma. (...) Este seria um modo de a vida produzir a si mesma pelo excesso expressivo e não pela mera adaptação ao dado; a brincadeira, que imita o combate, é anterior a ele e o modifica. A abundância estética e não a adequação à penúria constituiriam o modo pelo qual a vida opera e se reproduz. (...) Uma filosofia da natureza, assim, continua Massumi, precisaria abordar o caráter intensamente expressivo e imaginativo da vida (idem, p.132-133-136).

Apanhar cogumelos na floresta, criar redes múltiplas de histórias heterogêneas, aceitar a resposta mútua dos outros que humanos e brincar. Talvez o alvorecer da escrita esteja agitando-se sob os nossos pés, mas perdidos nos ruídos do acúmulo humano, incapazes de ouvir esses outros seres microscópicos, trabalhamos na barriga do monstro sem criar aliados. Para caminhar por zonas perigosas, talvez seja preciso esquecer um pouco a dramaturgia dos humanos, a dramaturgia da guerra, da força, e se abrir à curiosidade das florestas, pois “contar histórias é um tipo de insistência na alegria e no terror de viver e morrer bem nessa terra” (Haraway, 2015).     

Pedro Vermelho, encontrou a saída no e pelo conto kafkiano, ou seja, a literatura aqui criando linhas possíveis pelas quais seguir. “na medida em que o que está em jogo na escrita, para Deleuze e Guattari, é “transcrever agenciamentos; desmontar os agenciamentos” (Deleuze e Guattari, 1975 p. 86).

Se Pedro Vermelho, personagem do conto “Um relatório para uma academia” de Kafka, criou linhas possíveis e encontrou a saída através da literatura, nem os contos de progresso e nem os contos de ruína dão conta de novas inventividades e de novas colaborações. Como afirma Tsing: “É hora de prestar atenção à colheita de cogumelos. Não que isso vá nos salvar – mas pode abrir nossa imaginação” (Tsing, 2015, p.19).

Portanto, para entrar nessa lógica da vulnerabilidade é preciso se relacionar com a surpresa, com o imprevisto, com as perturbações das florestas, com suas assemblages polifônicas e romper com as formas atuais de destruição. As formas desaceleradas de pensar o mundo coabitam nesse novo espaço literário.

Seguindo o apelo de nossa curiosidade, essa curiosidade guiada por “temporais múltiplos”, estaremos dando o primeiro passo em direção à precariedade. E essa não somente é a condição atual do mundo, como nunca deixou de ser a condição dos humanos e não humanos, mesmo que os primeiros tenham acreditado na miragem de sua superioridade.

 

Se uma onda de histórias conturbadas é a melhor maneira de contar sobre a diversidade contaminada, então é hora de fazer dessa pressa parte de nossas práticas de conhecimento. Ao ouvir essa cacofonia de histórias conturbadas podemos encontrar nossas melhores esperanças de sobrevivência precária. (idem, p.34)

 

 Buscar a vida nesta ruína talvez seja a melhor forma da narrativa contemporânea ser atravessada por agenciamentos intempestivos, inorgânicos. O que está em questão agora é a composição e recomposição de entidades não fechadas em si, que conciliam temporalidades, corporalidades e espacialidades outras. Ceder aos apelos do que acontece embaixo de nós, provavelmente, seja a nossa única opção.

pri.png
Elusive life, Oregon. Matsutake caps emerge in the ruin of an industrial forest.

Referências:

 

COCCIA, E. A Vida das Plantas. Uma Metafísica da Mistura. Florianópolis, Cultura & Barbárie, 2016. 

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. “Micropolítica e segmentaridade.” In Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 3. Coordenação da tradução de Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Editora 34, p. 91-125, 2012.

HARAWAY, D. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulhucene. Durham and London: Duke University Press, 2016. 

 

______.  Ficar com o problema: gerar parentesco no Chthuluceno, a ser publicado pela n-1 edições em tradução de Ana Luiza Braga. Entrevista com Donna Haraway, feita por sua editora para o espanhol, Helen Torres. Disponível em: https://n-1edicoes.org/137

Acesso em: 27/11/20.

 

KAFKA, F. “Um relatório para uma Academia”. In Um médico rural.  Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, p. 57-67, 1994

 

FAUSTO, JULIANA A. Cosmopolítica dos Animais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2017. 

LE GUIN, U. K. “The Carrier Bag Theory of Fiction.” In Dancing at The Edge of The World. Thoughts on Words, Women, Places. New York: Harper & Row, p. 165-170, 1990.

MANCUSO, S. Revolução das plantas - um novo modelo para o futuro. São Paulo, Ubu Editora, 2019. 

MASSUMI, B. What Animals Teach us about Politics? Durham and London: Duke University Press, 2014.

TSING, ANNE. The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins, Princeton University Press, 2015. 

 

______. Viver nas ruínas. Brasilia: IEB Multi Folhas, 2019.

bottom of page