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ARARA, CACHORRO, GALINHA E CALUJÍ DE MACAÚBA

Jaimile Cunha

Eu poderia falar dos humanos Javaés, mas me parece que os não-humano araras ganharam meus olhos na mais significativa parada que fiz na Aldeia Boto Velho, lugar de comunidade do povo javaé. Eram duas “únicas” araras, da espécie “Ara ararauna” que não se desgrudavam, brincavam, brigavam, comiam, dividiam e se amavam. Como seres imponentes que são, a união e a presença constante destas em um galho baixo de árvore, fazia parte da roda familiar da tia Creuza, a tia que reúne parentes e amigos em volta de seu doce de Macaúba debaixo do pé de Jamelão. Estas tais araras percorriam todos os galhos e meus olhos não conseguiam se desgrudar delas. Na minha ânsia em vê-las tão de perto, e o melhor, de ver pássaros grandes e coloridos que por seu livre arbítrio habitavam um lugar que se assemelhava ao sofá da casa de um humano e co-habitavam com outras espécies. Aos meus olhos, eu só enxergava duas protagonistas e suas cenas de amor, livres, entre beijos, diálogos, alimentos e gritos “ararescos”, que por vezes, pareciam não ser unicamente românticos, mas de algumas discussões um tanto quanto necessárias naquela convivência. Este cenário me remeteu à alguns títulos que trata desse encontro de espécies e seus significados como o de Donna J. Haraway, “Quando as espécies se encontram”, Viveiros de Castro em seu ensaio sobre as “Metafísicas Canibales”, e a obra de Deborah Bird Rose sobre “Os cães selvagens que sonham”que vieram de encontro aos pensamentos que trago neste ensaio sobre tentar melhor perceber, compreender e observar a situação que vivi há cerca de um ano atrás neste lugar tão especial, a Aldeia Boto Velho, situado na Ilha do Bananal, simplesmente a maior Ilha fluvial do mundo, no estado do Tocantins.

Persistir nas araras, me fez recorrer aos pensamentos mais clichês porém reais e presentes, fatídicos de nossa pátria mãe gentil, que carrega na simbologia das araras a beleza, a liberdade, a plenitude de um Brasil “exótico” por suas florestas verdes e vôos de pássaros gigantes, coloridos e por vezes, escondidos. É generoso lembrar que nossas florestas abrigam o que se denomina de “maiores representantes dos psitacídeos”, que são as araras lindas araras e, que estas carregam a classificação da espécie biológica da seguinte forma, araras azuis (Anadorhynchus hyacinthinus, A. leari e A.glaucus), araras vermelhas (Ara macao e Ara choloptera) e arara canindé (Ara ararauna)” (COLLAR, 1997; SICK, 1997 apud Vale et al, 2006, p. 712).

Aquelas divertidas aves durante um curto período de tempo me chamaram intensamente a atenção, mais que isso, me mobilizaram pela parceria, desenvoltura, amor e rebeldia que traziam aos meus olhos. Contexto este que reflete a “miríade de espécies da terra que se confundem e se confundem [...] entre os encontros contemporâneos com outras criaturas, principalmente, mas nem somente os domésticos” (Haraway, p. 05), e me acolheu nos mais diversos pensamentos sobre o que eu não tinha ideia nas trilhas da aldeia. Neste mesmo rumo, outras reflexões incorporaram o meu ensaio, em termos de buscar pensar o mundo que tive diante de mim, e que autores como Haraway nos traz com suavidade por seu encontro com muitos outros seres que habitam o planeta terra, estivessem eles

no laboratório, campo, zoológico, parque, escritório, prisão, oceano, estádio, celeiro ou fábrica, como seres comuns como nós, também são ao mesmo tempo, figuras criadoras de significado que reúnem aqueles que respondem a eles em tipos imprevisíveis de "nós" (Donna J. Harraway, 2008, p. 05).

A miríade de espécies da terra de Haraway, que se confundiram e nos confundiram, parece nos definir como seres humanos contemporâneos que também são capazes de perceber a sua interação com outras espécies, deparando-se com a ideia e reafirmação plena de queos humanos não são o foco do mundo. Contexto este válido e que me auxilia a partir das antropo “lógicas”, na hora de rememorar uma saíde de campo, que se tornou para além de um assunto técnico, um despertar para um passeio e simplicidade do compartilhar entre espécies em uma tarde de domingo na Ilha do Bananal.

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Figura 01. Um beijo de sabores no pé de jamelão
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Figura 02. Parceria pela aldeia

Da nossa classificação sobre a espécie à sua presença e convivência com outras espécies ao redor, fossem humanas ou não humanas, pouco encontrei sobre qualquer resposta clara. E aí que me ocorreu a melhor parte que foi me dar conta sobre meu narcisismo, e a tentativa de encontrar explicações a partir do meu umbigo, e contentemente despertei, acho que em tempo. Naquele momento da caminhada pela aldeia, me vi parte de um todo que até então, eu separava. Fui parte comum porém devidamente forasteira, mas convidada e por isso reunida ao costume de reunião debaixo de um pé de jamelão, enquanto a tia Creuza fazia o seu doce chamado de “Caluji de Macaúba”.

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  Figura 03. Fazendo parte do rito de espécies

Diante desta cena, encontro nas palavras de Viveiros de Castro uma reflexão sobre a busca por pensar através de uma perspectiva outra, menos narcisista, mas sim, multinaturalista, que evidencia a elaboração da compreensão do mundo a partir das mitologias indígenas ameríndias como sendo esta

la forma privilegiada para poner em forma de discurso el plano de inmanência indígena […] em torno a las causas y las consecuencias de la especiación- la Asunción general inestable em la que los aspectos humanos y no humanos se hallan inextricablemente mesclados [...] (Castro, p. 45, 2010).

Ainda conforme Castro, o discurso mítico consiste em registros de atualização do presente estado de coisas, observando uma condição pré-cosmologica virtual dotada de transparência perfeita, o que ele chama de “caosmos” relacionando-o às dimensões corporais e espirituais dos seres, que então ainda não eram ocultadas mutuamente. Ou seja, o pré-cosmos, ao invés de buscar diferenças finitas e externas como se costuma colocar o homem ocidental branco, evidencia uma diferença infinita e interna, propria de cada personagem ou agente. É aí que se encontra o “regime de multiplicidade, proprio do mito” (Castro, 2010, p. 46), que se torna o meio pelo qual a visão entre espécies é colocada.

A compreensão do pré-cosmologico, do mito, ou do multinaturalismo, faz ainda mais sentido quando em meio ao percurso daquela tarde, vejo uma das mais singelas cenas que testemunhei um tanto quanto próximo às araras, mas de alguma forma retraídos, em plena harmonia como verdadeiros parceiros, lado a lado, conviviam um cachorro e uma galinha, um deles devidamente aconchegado logo abaixo de uma das cadeiras postas para as visitas e parentes sentarem, e claro, como esperado ele é um deles.

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Figura 04. Amigos, parentes, vizinhos

Esta cena me remeteu aos relatos de Deborah Bird Rose em sua análise sobre a relação de parentesco dos cães selvagens australianos, os Dingos, e os aborígenes australianos. De forma análoga, é possível enxergar estruturas relacionais similares entre os javaés e as muitas espécies que por lá vivem, principalmente quando se sabe que o discurso mítico javaé permeia o entendimento de que não há separação entre natureza e cultura.

Voltando aos relatos dos aborígenes sobre o significado dos cães selvagens, é evidente o sentido de parentesco na maneira de coexistir destes:

os grupos de parentesco entre espécies são fundados em carne e osso, e o que acontece com qualquer membro do grupo afeta outros membros do grupo [...] havendo vulnerabilidade nesses relacionamentos por causa das conectividades e, ao mesmo tempo, há força. Ninguém (humano ou não humano) fica de pé ou cai sozinho (Bird Rose, 2011, p. 99)

No sentido das espécies, há ênfase sobre uma inteligência dispersa entre estas, e que a crença mitologica que se faz entre existência e espécies, encontrada no cerne antropologico multinaturalista e perspectivista ameríndio parece se assemelhar no sentido de “integração”, à crença do aborígene australiano em relação aos seus dingos (cães selvagens). Conforme Bird Rose (2011), relatos aborígenes trazem a consciência de que tanto pássaros quanto pessoas são igualmente inteligentes, e que a experiência de viver em um mundo de tantas incertezas requer a compreensão de que os humanos não são os únicos seres sencientes na Terra.

Nesta inter-relação entre espécies, Viveiros de Castro (2010) traz o perspectivismo ameríndio que explica o lugar do mito na explicação antropológica do lugar de humanos e animais, ao falar que este ocupa um lugar geométrico em que a diferença entre os pontos de vista se anulam e se ampliam ao mesmo tempo. Discurso este colocado como absoluto em que cada tipo de ser se apresenta aos otros como a si mesmo, ou seja, como humano, enquanto atua manifestando sua natureza distinta e definitiva de animal, de planta ou de espírito.

De outro ponto de vista, o mito fala de um estado do ser em que “os corpos e o nomes, as almas e as ações, o eu e o outro se interpenetram”. Ou seja, contado de outra forma, a busca antropológica por descrever a passagem da natureza à cultura, evidencia que essa passagem não seria um processo de diferenciação do humano a partir do animal, como propõe o pensamento evolucionista occidental, mas sim, posto da melhor forma, “La condición comúm a los hombres y a los animales no es la animalidad, y si, la humanidad”. E no entendimento sobre a explicação mítica, o que fica claro é que a cultura distingue-se da natureza como a natureza distancia-se da cultura, ou seja, os mitos contam como os animais perderam os atributos dos quais os homens herdaram ou conservam. “Não que os humanos sejam antigos não-humanos, mas que os nao-humanos são antigos humanos”.

Assim, se a nossa antropologia vê a humanidade como algo erguido sobre as bases animais, normalmente ocultadas pela cultura – haviamos sido outrora completamente animais, e seguiríamos sendo animais no fundo -, o pensamento indígena ao contrário conclui que depois de ter sido humanos, os animais e outros seres cósmicos continuam o sendo, só que de uma maneira que não está evidente para nós, os ditos humanos de agora (tradução da autora, Viveiros de Castro, 2010, p.50).

Relações estas que fazem todo o sentido ao voltar para as imagens do querido cahorrinho e sua irmandade com a galinha, que por sua vez estavam próximos às araras que ganharam os meus olhos por mais algumas horas, e que estavam compondo as várias cenas que se formavam aos meus olhos em uma doce tarde de domingo, ao saboreio do caldo doce de Macaúba da tia Creuza javaé junto às demais espécies, que incluia inclusive a “Macaúba” do Caluj.

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  Fig. 05. Macaúba antes de virar “caluji”

Talvez ali naquele momento, naquele acontecimento, eu não tenha conseguido enxergar tudo que percebo agora pois foram poucas horas naquela tarde de domingo. Neste momento em que revisito as fotos, percebo que em experiência ainda permaneço conectada, cada vez mais entendendo a complexidade afetiva entre espécies deste trançado afetivo.

REFERÊNCIAS

Haraway, Donna J. When species meet. Posthumanities. University of Minnesota, Minneapolis, London, 2008.

ROSE, Deborah, Bird. Wild Dog Dreaming: love and extinction. University of Virginia, 2011.

Valle, F. S. (et al). Parâmetros de bioquímica sérica de machos, fêmeas e filhotes de Araras canindé (Ara ararauna) saudáveis mantidas em cativeiro comercial. Ciência Rural, Santa Maria, v.38, n.3, p.711-716, mai-jun, 2008 ISSN 0103-8478

Viveiros de Castro, Eduardo. Metafísicas Canibales: líneas de antropologia postestructural. Conocimiento, 1ª edición , 2010.

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