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Fazendo parentes


Cães de Contralmirante Cordero

Fábio Tremonte

“Importam as histórias com as quais contamos histórias [...] Importam quais histórias fazem mundos, quais mundos fazem histórias” [Donna Haraway]

Captura de Tela 2020-12-01 às 19.29.00.

Contralmirante Cordero

No norte da Patagônia argentina, há um pequeno pueblo de, aproximadamente, 700 habitantes, entre Barda del Médio e General Roca, localizado na província de Río Negro, na região denominada de Alto Valle, chamado Contralmirante Cordero, em homenagem ao um dos fundadores da marinha argentina e celebrado pelos conquistadores do deserto. Bartolomé Leonidas Cordero nunca esteve na Patagônia, mas ainda assim, além

de nome de cidade, também, emprestou seu nome a Escuela Primaria no 134, situada no limite entre a cidade e o deserto.

A região do Alto Valle quando mirada por uma visão aérea compõe uma distinta mancha verde, margeada, dos dois lados, pelo deserto. Essa mancha verde é formada por plantações, principalmente, de maçãs, pêssegos e pêras. Río Negro é conhecida pela exportação de frutas, além de estar localizada a cidade Bariloche, destino de férias de uma classe média brasileira. Essa mancha verde é possível pela quantidade de canais artificias de água que cortam e irrigam o solo desértico desse lugar. Esses canais seguem o mesmo trajeto que os antigos cabos do telégrafo que, por sua vez, seguiam os passos dos genocidas que empreenderam a Campanha do deserto que tornou real esse território da “Patagônia (que) era apenas uma palavra escrita em um mapa vazio”, como descreve o anarquista Chrsitian Ferrér em seu livro Cabezas de tormenta.

Vizinha a Contralmirante Cordero está o pueblo de Roca, homenagem ao general Julio Argentino Roca, líder da Campanha do deserto, mas essa é outra história.

Escuela nº 134

Entre os anos de de 2014 e 2019, no mês de janeiro, durante o quente e seco verão patagônico e férias escolares, aconteceu a Residência Artistica Barda del Desierto que levava artistas de diversas partes do mundo (Argentina, Brasil, Chile, México, Colômbia, EUA, Espanha, Áustria, Croácia, Itália) para, durante 3 semanas, habitarem as dependências da escola.

Cada sala de aula se tornava quarto e ateliê. Os corredores, o SUM (salón de usos multiples), os laboratórios, o pátio e a cozinha se convertiam em espaços comuns de experimentação e convivência. O espaço escolar era, assim, então, ressignificado: outros usos para sua ocupação eram dados, outras formas de habitar e circular, outra relação com sua arquitetura, outras possibilidades de aprender e ensinar eram estabelecidas.

Uma comunidade temporária ali se delineava. Comunidade que envolvia a relação entre artistas residentes, entre artistas residentes com o deserto, artistas residentes e os comerciantes locais, artistas residentes e alunos da escola em férias, artistas residentes e moradores da cidade, artistas residentes e a população canina que habita a cidade, a escola, o deserto.

Os cachorros vivem nesse lugar de maneira diversa e em grupos específicos: o deserto como um mundo composto por vários mundos, várias ontologias, não de versões do mesmo mundo.

Nina, Verde, Azul, Tinto

Chegar em Contralmirante Cordero imediatamente nos colocava em contato com uma possibilidade imensa de outros mundos: a paisagem desértica cortada por água e preenchida por verde, o sol quente, o ar seco, o céu azul, a língua espanhola pronunciada por um acento de dentes levemente cerrados, um funcionamento matutino e noturno da cidade, com uma longa pausada durante a tarde originada pelo extremo calor desse horário e a presença intensa de cães. Cães na entrada da cidade, nas portas de mercados e prefeitura, na chácaras, nas ruas, no deserto, na beira do canal, no cemitério, no mirante, na escola...

Nina, Verde e Tinto foram os primeiros a se aproximar. Tinto e Verde moravam na chácara mais próxima da escola. Nina era uma cadela do pueblo, também conhecida por Princesa pelos moradores. Juntos formavam um trio inseparável. Havia, ali, claramente uma disputa entre Verde e Tinto pela atenção de Nina. Nina é uma cadela de olhos doces e atentos, com pelo cor de um amarelo-caramelo. Uma cadela companheira e guardiã; era a única que tinha permissão para dormir dentro da escola, pois passava a noite em vigília sem se abalar com latidos e uivos de outros cães durante a noite. Era uma comunidade em devir-com, viver-com, pensar-com.

Nina, Verde, Azul e Tinto nos acompanhavam todo o tempo. Eram nossa companhia durante as caminhadas no deserto, nos mergulhos no canal artificial, nas voltas pelas bordas da cidade. Entretanto, havia um limite, uma barreira imaginária, mas muito real para eles, que não ousavam ultrapassar. Em direção ao pueblo (que fica no lado oposto ao deserto), caminhavam cerca de 80, 100 metros conosco. Aí, paravam. Não passavam desse limite. Seguíamos em frente para resolvermos nossas questões, como arrumar o pneu de uma bicicleta, visitar um morador ou comprar ingredientes para as refeições. No nosso retorno, estavam ali, parados, a nossa espera. A festa que faziam era como se não nos vissem há anos, eram pulos e latidos de contentamento pelo reencontro.

Nina, Azul, Verde e Tinto estavam ali para "fazer parentes”, como diz Donna Haraway. Existia ali uma intensa troca de afeto e aprendizagem. Da primeira vez que fui, meu desejo era de aproveitar o tempo intensamente. Queria estar no deserto, na cidade, no canal todo o momento possível. Logo, descobri, observando Nina, que o tempo ali se dava de maneira diferente da qual estava acostumado. Ali, éramos matutinos e noturnos. As tardes existiam para descansar, recuperar a energia, se abrigar do sol do deserto, do calor de 42 graus. Aprendi isso vendo Nina deitada nos piso frio da escola todas as tardes, descansando tranquilamente e me ensinando através da sua pausa. Como se aprendesse, de alguma maneira, a adotar o ponto de vista do cachorro.

Breve nota: Nina nos acompanhou de 2014 a 2019.

Verde nos acompanhou de 2014 a 2017, morreu durante o ano de 2017.

Azul é filha de Nina e Verde, nos acompanhou de 2018 e 2019.

Tinto nos acompanhou de 2014 a 2018, morreu em 2018.

Pablo e Catalina

Pablo e Catalina eram os cães que residiam permanentemente na escola durante todo o ano. Eram cuidados e alimentos pelas zeladoras durante o ano letivo, tarefa essa que nos era transmitida durante o período em que ali estávamos.

Ambos eram muito assustados. Provavelmente, tinha tido experiências difíceis com humanos, o que é comum na região, principalmente, no espaço público onde as pessoas se reúnem para os asados de domingo. Mas, sobre isso, trataremos mais adiante.

Estavam sempre juntos. Tinham olhos tristes e assustados. Nos primeiros dias da nossa chegada, evitavam o contato, se afastavam sempre que nos aproximávamos. Ficavam sempre no mesmo lugar. Pablo habitava um canto próximo a entrada lateral da escola, passava a maior parte do tempo deitado, tinha um caminhar lento e pesado.

Catalina era mais jovem, tinha uma postura acuada, os pelos das costas sempre eriçados, como se passasse a vida assustada. Morava em uma pequena construção feita para colocar o lixo a ser recolhido. Era formado por dois ambientes com duas portas, a da direita era onde fica o lixo; na porta de esquerda, já não se colocava lixo, respeitava-se o lugar da cachorra. Catalina dividia esse espaço com um sapo.

Com o passar dos dias, ambos iniciavam uma aproximação, mas sempre no espaço externo da escola. Deslocavam-se do lugar onde passavam o dias e juntavam-se a nós no pátio localizado na parte de trás da escola. E, ali, passavam parte da noite com a gente.

Em 2017, algo inusitado aconteceu, era o último dia de todos os artistas residentes ali (no dia seguinte começaríamos a ajeitar as escola e voltarmos para nossos países). Como de costume, fazíamos uma asado noturno no deserto, para nos despedir. Nesse ano, além de Nina, Verde e Tinto, Pablo e Catalina nos acompanharam. Isso nos gerou um misto de alegria e preocupação, pois, até onde sabíamos, eram cachorros que não estavam acostumados a sair, o trajeto era de uma caminhada de 40 minutos para ir e 40 minutos para voltar, além do tempo que passaríamos ali. Tivemos uma noite agradável, Pablo e Catalina, quando se cansaram, voltaram para a escola e, nos dia, seguinte, estavam ali, próximos a entrada lateral da escola, nos seus locais de costume.


Fabinho e Marte


Até agora nos detivemos nas narrativas de animais que, de uma maneira ou outra, tiveram acolhida nos espaços criados e habitados por humanos. Cães que, apesar de não serem animas de estimação e tampouco domésticos, mas, que estavam habituados e inseridos em relações com humanos.

Fabinho parecia que teria um destino como de outros cães que nascem nas bordas das chácaras, que habitam as ruas do pueblo, que frequentam clandestinamente territórios de outros cachorros em busca de abrigo e comida, que solicitam pela sobrevivência nos espaços frequentados por humanos.

Fabinho apareceu num fim de tarde de domingo, andando vacilante pelas sombras e cantos da escola. Não era mais que um vulto encurvado. Quando conseguimos criar uma contato e pudemos nos aproximar, percebemos que tinha uma grande queimadura nas costas que acompanhava todo o comprimento da coluna. Segundo um de nossos companheiros locais, queimadura de água quente para mate, provavelmente, feita por alguém que fazia um asado na beira do canal e de quem o cachorro se aproximou para tentar conseguir comida.

Fabinho, não tinha nome, viveu conosco pelos dias que ainda restavam de residência. Foi cuidado, curado, engordou e cresceu. Era como uma criança feliz e atrapalhada, perdia-se na convivência, comia o que não devia, fazia cocô por todos os lados, mas devagar aprendia. Desde esse ano, 2017, vive na chácara do produtor da residência.

Marte tem uma história parecida. É a única sobrevivente de uma ninhada abandonada próximo a escola. Foi encontrada andando fraca pela professora de patinação da escola que, imediatamente, a trouxe para nós. Também conviveu com os artistas durante janeiro de 2018 para ser adotada pelo nosso produtor.

Galgos e as matilhas de cachorros do deserto


Os galgos são animais comuns na paisagem dessa região. Durante anos foram animais que competiam em corridas de cães dessa raça; hoje proibidas. Com a impossibilidade de seguirem competindo, os galgos foram abandonados pelos seu donos.

Deixados à própria sorte, buscaram a companhia de outros cães que encontravam-se na mesma situação. Com o passar do tempo, os galgos foram sofrendo algumas modificações físicas, tanto na altura, quanto nas cores e quantidade de pêlos. Não é incomum, ver esses cachorros modificados pelo cruzamento com outros tipos de raças e com cachorros já de raça mista ou indefinida. Configuraram-se como um grupo nômade não-centralizado.

Uma outra situação ocorrida foi de um retorno ao selvagem, uma feralização desses cachorros. Encontram-se em bandos, organizam-se em matilhas de cachorros que se tornaram ferais, vivem em uma comunidade segura e que se auto-protege, habitam cavernas e bardas do deserto e se organizam para caçar galinhas e, até, pequenos cabritos das chácaras locais.

A experiência mais próxima que tivemos com uma dessas matilhas foi em uma noite de super lua, onde a lua nasceu vermelha e enorme por detrás das bardas do deserto. Antes que a lua surgisse, era possível escutar ao longe os uivos desses cães feralizados. Invocavam a lua de maneira potente e arrepiante. Quando a lua, finalmente surgiu, foi possível ver a presença da matilha no topo da barda celebrando a lua.

El perro del cementerio

O cachorro do cemitério não tem nome e estava sempre acompanhado por um outro cachorro também sem nome. O cachorro do cemitério passava as noites no cemitério, localizado do outro lado do canal principal, já no deserto. O cachorro do cemitério vagava durante o dia na alameda em frente ao cemitério margeada por árvores plantadas pelo caseiro do cemitério. O cachorro do cemitério e, o outro cachorro, seu companheiro, amanheciam no mirante da cidade. O cachorro do cemitério e seu companheiro eram como dois andarilhos, dois vagabundos saídos dos livros de Jack London, se esse também fosse um cão escritor. O cachorro do cemitério e seu companheiro também

poderiam ser dois fantasmas de cachorros, poderiam ser os espíritos dos povos originários que foram ali assassinados pela Campanha do deserto a nos lembrar que já estavam ali antes daquele lugar ser convertido em deserto e que todos os seres do deserto, possivelmente, também já foram humanos.

Bibliografia

Bird Rose, D. Wild Dog Dreaming Love and Extinction. Virginia, Virginia University Press, 2011.


Despret, V. 2018 iQUÉ DIRÍAN LOS ANIMALES ... SI LES HICIÉRAMOS LAS PREGUNTAS CORRECTAS! Buenos Aires: Ed. Cactus.

Fausto, Juliana A. Cosmopolítica dos Animais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2017.


Haraway, Donna. 2016. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulhucene. Durham and London: Duke University Press.

Marras, Stelio. Virada animal, virada humana: outro pacto. scientiæ zudia, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 215-60, 2014
Viveiros de Castro, E. Metafísicas Canibais. Elementos para uma antropologia pós- estrutural. São Paulo: Cosac & Naify, p. 288, 2015.

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