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OS SABERES DAS ERVAS NA CURA DO INTANGÍVEL

Por Natalee Neco (Mestranda do programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da EACH/USP)
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Foto - divulgação
1 AS INTERAÇÕES ENTRE O MATERIAL E O IMATERIAL

Ao avistar uma pequena fila de pessoas com máscaras de proteção, respeitando determinado limite de aproximação, em uma rua residência do Jardim Califórnia, bairro central do município de Jacareí, interior de São Paulo, não se imagina que ali, reside uma benzedeira. Senhora que, já com os seus 69 anos, une a fé popular e o poder de cura da natureza para ressignificar as súplicas daqueles que chegam com anseios particulares – sejam eles do corpo físico, mental ou espiritual. Sua graça, Sônia Aparecida Rebequi Pereira.

Neste primeiro momento, em que pessoas descolam-se em plena pandemia de um vírus incerto a avassalador (COVID-19), em busca de uma cura espontânea advinda dos saberes ancestrais emergentes da natureza, percebemos um impulso de comportamento dos seres humanos, enquanto indivíduos, almejando a interação com o divino e com a natureza, que podemos refletir como uma potência de agir, naquilo que tange o material e o imaterial.

Esse termo, “potências de agir”, é defendido pelo filósofo holandês, Baruch Espinosa, argumentando o aumento da potência de agir quando há o estímulo da compreensão do fluxo de causas externas.

“Digo que somos ativos (agimos quando se produz em nós, ou fora de nós, qualquer coisa de que somos a causa adequada, isto é, quando se segue da nossa natureza, em nós ou fora de nós, qualquer coisa que pode ser conhecida clara e distintamente apenas pela nossa natureza) (ESPINOSA, Ética, III, Definições, II)”.

Mais recentemente, o antropólogo francês, Bruno Latour, trouxe o mesmo termo, associando essa potência de ação em seres da natureza também, levando em consideração os “modos de ação” que interligam esses personagens materiais e imateriais (LATOUR, Bruno. Diante de Gaia, 2020).

Deste modo, a meu ver, seres humanos que agem em busca da interação direta com o poder de ação da natureza, é um exemplo desta relação de potências de agir.

2       OS SABERES DAS PLANTAS

Eu te benzo, eu te curo, eu te livro”. Assim somos recebidos por Sônia, com um raminho de arruda nas mãos e um terço, em gestos que sinalizam o sinal da cruz. ”Sem a arruda, nada é possível. A erva é o canal direto com o Deus, por meio da natureza”, relatou a benzedeira.

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Foto - divulgação

Na benzeção, essa prática religiosa popular que, através de saberes ancestrais e da natureza busca a cura, as ervas são protagonistas no intermédio com o divino. Entre as ervas ou as “plantas medicinais” mais usadas por Sônia, estão o alecrim, alfazema, boldo, capim limão, erva cidreira, hortelã e louro e, como descrito acima, destacando-se entre todas, a arruda.

No livro A Vida Das Plantas: Uma Metafísica Da Mistura, Emanuele Coccia, descreve esse diálogo com o material e o imaterial. O filósofo italiano argumenta que, a vida das plantas e sua atuação direta ou indireta é a gênese constante de nosso cosmos e que, “as plantas encarnam o laço mais íntimo e elementar que a vida pode estabelecer no mundo (p.13)”.

“Pelas plantas, a vida se define inicialmente como circulação dos seres vivos e, por causa disso, se constitui na disseminação das formas, na diferença das espécies, dos reinos e dos modos de vida. Contudo, elas não são apenas intermediárias. São agentes do limiar cósmico entre vivo e não-vivo, espírito e matéria”. (COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura, p.16, 2018).

A busca pela cura varia de pedidos espirituais, mentais e físicos. Não existe restrição de idade, o benzimento alcança desde as crianças até os mais velhos. Tem gente que pede ajuda para as dores do coração, para as preocupações rotineiras, para proteção de inveja e mal olhado, para doenças graves e aquelas consideradas populares também, como cobreiro (infecção viral provocada pelo mesmo vírus da Catapora, o Varicela-zoster) e bucho virado (problemas no estômago).

Ao descrever cientificamente a ação das plantas em diagnósticos de doenças, o autor e neurobiólogo italiano, Stefano Mancuso, descreve no seu livro Revolução das Plantas: Um Novo Modelo Para o Futuro, exemplos comprovados dessa “cura pela natureza”.

“Os efeitos benéficos da presença das plantas proporcionadas à mente humana são conhecidos há décadas. Pessoas com transtornos mentais se beneficiam da relação com plantas em inúmeros centros de saúde de hortoterapia espalhadas pelo mundo. Crianças em idade escolar com DDA (Distúrbio de Déficit de Atenção) mostraram um desemprenho no estudo muito melhor na presença de plantas”. (MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas, p.146, 2019)

Sejam nesses centros, conforme descritos por Mancuso, ou em casas, onde as benzedeiras atuam, os saberes das plantas são fundamentados. Comprovando, a atuação direta da vida da natureza, na vida dos seres humanos.

3      CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VIDA DAS PLANTAS EMERGINDO DAS RELAÇÕES HUMANAS

Sônia, seguindo a tradição das benzedeiras, leva o saber transmitido de geração em geração. A avó era benzedeira, a mãe também e agora, Sônia em sua missão, já está realizando benzimento há mais de trinta anos, sem pedir nenhuma recompensa em troca e também, sem negar quem bate à sua porta.

As lembranças de infância sobre o benzimento visitam o rural, onde as antecessoras da família realizavam os rituais. De acordo com Sônia, a relação com a terra, com a natureza, sempre esteve presente. Hoje, ser benzedeira em um espaço urbano é levar essa relação para mais pessoas, fazendo com que ainda no século XXI, os indivíduos possam vivenciar o poder da fé e da natureza.

Nesse ritual de fé, vimos aqui à atuação das plantas ou ervas como agentes protagonistas dessa ação. Relembrando essa vida pulsante das plantas, a antropóloga norte-americana, Anne Tsing, apresenta ainda, essa relação de criação inspiradora que esses serem possibilitam. Aqui, vimos o exemplo do benzimento.

“Plantas não têm as faces éticas de Levinas, nem bocas para sorrir e falar, é difícil confundir duas práticas comunicativas e representacionais com as nossas. No entando, suas atividades de criação de mundo e sua liberdade de agir também são claras – se permitirmos que a liberdade e a criação de mundo sejam mais que intenção e planejamento. É desse potencial compartilhado de liberdade e criação de mundo que podemos avançar para vidas sociais mais que humanas”. (TSING, Anne Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno, p. 125, 2019).

Por fim, analisando essa interação potente, viva e transformadora das plantas com os seres humanos – e, refletindo para além, entre as relações animais também, fecho essa reflexão com o comprometimento da bióloga, filósofa e escritora Donna Haraway (2009), na qual nos ajuda a “reaprender os humanos como uma espécie companheira, dentre outras”.

A vida das plantas e dos animais emerge nas relações humanas.

REFERÊNCIAS

COCCIA, E. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. 1ª ed. Editora Cultura e Barbárie. 2018.

ESPINOSA, Baruch. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. In: Vol. “Espinosa” da Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

HARAWAY, D. Se nós nunca fomos humanos, o que fazer? São Paulo: USP, 2009. Acesso em dezembro de 2020: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1862593/mod_resource/content/1/pontourbe-1635-6-se-nos-nunca-fomos-humanos-o-que-fazer.pdf.

LATOUR, Bruno. Diante de Gaya. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

MANCUSO, Stefano. Revolução das plantas. São Paulo: Ubu Editora, 2019.

TSING, Anne Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: Mil folhas. 2019.

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